Porque não consigo sentir as coisas desse jeito?
Porque sé eu sinto e me emociono, não me vem nem uma lágrima?
Que se passa comigo?
Os outros devem pensar que sou insensível, Que nada me comove, nada me toca. Alguns ate, já me descreveram como uma “pessoa fria” “a Dama de Ferro”
Outros me felicitam por ser tão forte e corajosa, por aguentar tanto e sair “ilesa das situações”»
Já te aconteceu algo parecido com isto ?
Já te perguntastes se verdadeiramente estas a sentir a Vida?
Quando e a quanto tempo deixaste de a Sentir?
Parece surreal, mas não é, lê ate o fim que eu tenho a certeza que vais perceber
Vou contar-te uma história pessoal, nunca antes tinha falado disto.
Era uma vez numa Semana Santa há 30 anos atrás…
«…A família estava devastada, passava por uma dor e sofrimento inimaginável
A minha mãe acabara de receber a noticia da morte de uma filha com 22 anos, a terceira de 4 filhos, num acidente de carro
O meu pai que era um homem completamente Alfha, com muito carácter, forte, ponderado…literalmente quebrou, se isolou, entrou numa espiral em decadência e depressão profunda.
Para ele era como se a vida tivesse acabado ai nesse trágico momento, já não fazia sentido para ele, nunca mais voltou a ser aquele homem que eu conhecia.
Toda vez que passava onde acontecera o acidente, gritava, vociferava, amaldiçoava a Deus e todos procurando um culpável.
Ele tentou continuar com a sua vida normal, vezes ia a trabalhar, vezes nem saia do seu quarto, vezes bebia e chorava de uma forma que desgarrava a alma. Assim foi sobrevivendo durante os 4 anos seguintes, tempo em que ele também partiu.
Lembro que na altura em que ele partiu, meus irmãos e eu pensamos e concordamos em que papa nunca não conseguiu a diferença de minha mãe, ultrapassar a morte da filha.
Hoje por hoje confesso que ainda acredito nisso.
A minha mãe não parava de chorar, mal dormia, mal comia, repetia muitas vezes que queria despedir-se dela, abraçar-lha, rogava e implorava a Deus por isto, o seu desejo era tão intenso, tão genuíno, tão puro, tão da alma, que acredito com certeza absoluta que as suas súplicas foram atendidas.
Não recordo se tinham passado um par de dias ou uma semana tal vez, mas algo tinha acontecido, ela acordou diferente, lembro-me que a sua cara brilhava, havia um contentamento que não consigo descrever com palavras, tinha sonhado com a sua filha, estavam sentadas no jardim de casa, não se lembra do que falaram, mas nunca mais esqueceu o quanto se abraçaram…a partir desse sonho pararam as lágrimas. Nunca vestiu de preto, passou a usar toda a roupa da filha, esta foi a sua forma de a sentir mais perto dela, hoje é o dia que conserva roupas da minha irmã. Raramente a voltei a ver a chorar pela perda da Maribel.
Eu, bem durante todo um ano cada vez que chegava a noite, ai na minha cama, desatava a chorar, desaguando toda a dor que sentia pela sua ausência. Era horrível pensar que nunca mais a voltaria a ver, nunca mais poderia tocar-lha, abraçar-lha Achava que devia evitar chorar a frente dos meus pais…tinha de ser forte e manter o forte, a minha família estava a ruir por todos os cantos, o caos se instalava, ninguém sabia para onde se havia de virar.
Não houve uma conversa entre pais e filhos, não se falou do que cada um estava a sentir, havia um vazio, um não tocar no tema
«mama: estou bem filha, estou tranquila»
«papa: uma porta blindada nada entrava nada saía, lembro que a primeira vez que o vi após saber da noticia, corri a abraçar-lho e ele me esquivo e se afastou, sem uma única palavra»
Todos os tios e tias que estavam a ficar em casa andavam como se estivessem a caminhar sobre cascas de ovos partidos, tudo parecia oco, tão sem sentido…
A mesa eram escolhidos os mais variados temas, sorrisos tímidos, olhares escondidos, conversas de aparência, de circunstancia a desviar qualquer coisa, qualquer palavra, qualquer gesto que pôde-se tocar e evidenciar tamanha ferida, uma ferida totalmente visível mesmo no invisível, uma ferida totalmente aberta, a sangrar mas que ninguém se atrevia a encarar.
Porque?
Na altura não percebia, mas hoje acredito que era porque
fazia mais sentido esconde-la e escondermo-nos dela, porque por alguma razão vai-se lá saber, por alma de alguém a muito tempo atrás, decidiu que sentir e expressarmos a nossas Dores não era correto, é algo ruim, mau, é indevido, indelicado, inadequado, improprio, é de fracos, e de má educação, faz mal a saúde e aos outros….
Hoje venho aqui dizer-vos que NÂO, não, e não isto não faz sentido e é uma mentira que nos conforta e por outro lado também nos destrói.
Não damos conta de quanto nos estamos a magoar a nós próprios e aos que temos ao nosso lado.
E tudo porque ?
Por não SENTIR toda a Dor que estamos a sentir e que carregamos dentro.
Toda vez que tentamos converter-nos em super heróis/heroínas, super fortes, super aguentadoras.
Toda vez que engolimos e abafamos em nós, a própria voz, que nos carregamos as costas a responsabilidade do bem estar de todo o mundo a nossa volta, que fingimos que estamos bem quando estamos na merd@ para que tudo aquilo que vemos e conhecemos como o nosso mundo “não caia”
Não SENTIR-NOS…
Nos tira a nossa humanidade, nos de-sensibilizamos, ficamos desprovidos da nossa capacidade de Sentir, incapazes de lidar e gerir todas essas emoções mais densas que emergem continuamente do profundo do nosso ser ao mais ínfimo estímulo, que trazem lembranças, memorias guardadas de dor, de sofrimento de muitas feridas nunca vistas, quanto mais supridas, e assim vamos pela vida fazendo de conta que esta tudo bem e continuamos acumulando “necroses” que as poucos vão envenenando tudo o que somos, evidenciando-se e manifestando-se principalmente o nosso corpo.
Ficamos dividas, fragmentadas, perdidas, a cabeça vai para um lado e o corpo quer ir para outro, nos sentimos separadas de tudo e todos, excluídos rejeitados, abandonados, extraterrestres nesta terra, com a sensação de ficarmos completamente sós por nossa conta, em profunda solidão e vazio interior, a grande maioria a viver uma vida sem sentido nem significado.
Depois perguntamos como é que há tanta violência, tanto masculinos agressores, tantos femininos masculinizados, abuso, disputas, suicídios, tanta distorções, essa historia de competição onde alguém tem de perder, ficar mal para que o outro possa brilhar…
Adeus a Unidade, a compaixão, a empatia, a partilha, a darmos as mãos uns aos outros, generosidade, a tudo o que representa verdadeiramente o Amor.
É duro sim, é cruel sim, mas não por isso deixa de ser o que é.
E eu fui tudo isso, naquela altura não tinha noção, consciência nem de uma quarta parte do que te estou a falar hoje 30 anos depois.
Achava que tinha feito o luto, que as feridas tinham sarado e os aprendizados estavam feitos, integrados e superados, como algo isolado que pertencia a uma única parcela da minha vida completamente isolada de qualquer outro compartimento da mesma, como se desse para separar e dividir em partes uma Lição de Vida, para a Vida Toda, que impacta TODAS as áreas da nossa vida.
Como é que continua a fazer mais sentido escondermos a nossa Dor?
Como é que continua a fazer mais sentido desprezar a VIDA por MEDO a encarar a DOR, os desafios que também fazem parte dela, e que nos ajudam a crescer mais fortalecidos o mesmo que a alegria e o prazer?
Será que ainda não é tempo de ACORDAR e Renascer para a Vida?
Quantos de nós continuamos a negar-nos a receber (e me incluo ), mesmo que em sonhos, aquele abraço que outrora ajudou a uma mãe a renascer após a morte da sua amada filha, um abraço que envolvia a Vida e a Morte, luzes e sombras, tristeza e alegria, dor e cura Tudo em UM SÓ, Num instante mágico, santo e libertador
Quanto compensa a nossa teimosia na descrença?
A nossa necessidade de que a vida seja como um quer, na hora que um quer, quando um quer, nem que isso nos mantenha de joelhos?
Para aquela mulher o seu “sonho,” algo que podia ser tildado de sobrenatural, de outra dimensão, de loucura ate pela dor, passou a ser tão real, tão nítido, tão VIVO como ela própria, não podia explicar-lho, atingir-lho com nenhum dos seus sentidos físicos, mas foi e continua a ser completamente real, VIVIDO e sentido.
Quanto compensa continuar a lutar por ter a razão sobretudo quando essa razão nos faz infelizes? Quanto compensa a defender e grande parte das vezes impor as nossas estruturas mentais, sociais, culturais etc como UNICAS e as mais corretas, com uma inflexibilidade de ferro que nos impede ver mais além do nosso nariz, limitando a nossa vida a uma caixinha quadrada, grande parte das vezes num positivismo irreal, que pretende fugir a 7 pés das nossa verdades mais intimas? Quanta VIDA se perde quando fazermos isto?
A boa noticia é que a Vida quer que continues a Crescer e evoluir e não vai parar ate conseguir o seu cometido.
Que a Esperança termina por morrer cheia de dor e angustia no banco de espera, fazendo com que a morte cumpra realmente o seu objetivo, “assistir-nos e conduzir-nos numa jornada de rendição, de Ressurreição sem bagagem que atrapalhe o teu avance, a tua entrega a uma Vida Renovada.” Atenção que não estou a falar de Religião.
A eminência de sua presença nos leva a conhecer A Fé, aquela força que nos impulsiona para a frente e nos enraíza a VIDA, muito alem dos limites autoimpostos, a Renascer para a Vida, essa fé te abraça, te acolhe e te sustenta nesse salto ao vazio, um vazio de ti, onde finalmente conseguimos olhar para nós próprios e transformar terras que outrora eram áridas e ressequidas, em terrenos férteis para receberem as novas sementes cheias de uma nova vida.
…Naquela Semana Santa não só morreu fisicamente a minha irmã, morreram estruturas, regras, se quebraram muitos moldes, hábitos, formas de ver e encarar a vida, morremos todos como homens, mulheres, mãe, pai, filhos, irmãs(os)…Uma parte de cada um de nós foi com ela e em contrapartida em cada um de nos houve um Renascer a uma nova VIDA, num novo homem, numa nova mulher, um novo pai, uma nova mãe, uma nova irmã com uma parte dela completamente viva, incluída, unida a cada um de nos.
Grata Maribel por tanto, acima de tudo por todo este Amor que hoje me enche a Alma, por me teres ensinado a AMAR e Amar-te com tua morte, tanto como nunca sonhei amar-te alguma vez em vida.
Eu pensava que se tratava de uma Lição sobre a Morte, a final era uma Lição de Vida, de Sentir-lha, com o intuito de humanizar-nos mais a cada dia para poder criar se não um mundo…Uma vida mais Humana com mais sentido e maior significado.
Marysol
Um abraço de alma a alma.
31/8/2021.
Add Comment